A recente Nota Pública da Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP) acerca da “transição de governo” deve ser vista como um belo exemplar e como um importante alerta.
É um belo exemplar do grau de complexidade que os “1038 altos executivos” conseguem imprimir numa análise sobre a dinâmica político-partidária do País.
É um importante alerta dos desafios atuais e futuros que as equipes dos Ministérios terão de enfrentar.
Nos últimos anos, o movimento dos colegas que se julgam “Os Típicos” vem ganhando força na Esplanada. O maior expoente deste grupo, provavelmente, é uma entidade privada nomeada como Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate).
Essa associação reúne as carreiras com os mais altos salários do serviço público e sustenta que é “integrada exclusivamente por entidades nacionais associativas e sindicais, representativas das carreiras que desenvolvem atividades essenciais e exclusivas do Estado”.
Embora, numa análise descontextualizada, um movimento como esse nos pareça apenas mais um entre tantos grupos que almejam autopromoção, faz-se imprescindível que as equipes dos ministérios comecem a se preocupar com os efeitos do fenômeno “Os Típicos” nos desdobramentos da trágica política de gestão de “pessoas” (pessoas?) do Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão (MPOG).
Se os ministérios já são locais de trabalho precário, com equipes insuficientes e mal remuneradas, a tendência é que o MPOG continue contribuído para protelar e ampliar este suplício, cada vez mais comprometido com uma ideologia de privilégios exclusivistas que não atendem às necessidades da população.
O TÍPICO JOGUINHO DE PALAVRAS
A ideia em torno do ser “Típico” tem a ver com uma forma muito peculiar de articular os debates acerca das atividades típicas de Estado.
Podemos exemplificar isso tomando a atividade que justifica a existência das equipes ministeriais, a Gestão Pública. O argumento se constrói mais ou menos nos seguintes termos:
- A Gestão Pública é uma atividade típica de Estado (uma obviedade);
- O cargo Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental – EPPGG atua na Gestão Pública (outra obviedade, pois diversos cargos na Esplanada assim atuam);
- Se a Gestão Pública é uma atividade típica de Estado e os EPPGG atuam na Gestão Pública, logo, a carreira de EPPGG seria uma carreira típica de Estado. Mais que isso, seria a carreira típica de Estado (uma omissão das demais carreiras que também atuam na Gestão).
Por isso que a Fonacate (importante ressaltar que a Associação dos EPPGG compõe este Fórum) basicamente relaciona uma carreira de servidores a cada atividade típica do Estado. No caso em questão, a carreira típica para a atividade típica “Gestão Pública” seria a dos EPPGG.
De tal modo, de forma sutil, deixamos de falar em atividades típicas de Estado e começamos a falar em carreiras típicas de Estado como se tratássemos da mesma coisa. Acabamos por desconsiderar o fato de que outras carreiras do Executivo também atuam nessa área. Trata-se de um percurso argumentativo que vai da obviedade à obliteração.
EPPGG NÃO É GESTOR
Outra sutileza que se tornou prática comum nos ministérios é a de se referir aos EPPGG como “os gestores” ou “o cargo de gestor”. Se considerarmos o termo “gestor” enquanto o exercício de cargos diretivos no serviço público (cargos de livre nomeação e exoneração), o fato óbvio é que um EPPGG só se tornará “gestor” se ocupar um cargo dessa natureza, assim como ocorrerá com qualquer membro de outra carreira no Serviço Público.
O CONTO DE FADAS DOS "GESTORES": NÚCLEO DURO, GENERALISMO E REUNISMO
Ressaltamos mais três pontos que perpassam os discursos dos que se dizem “gestores” (e não se releve o masculino, pois obviamente estamos lidando com um imaginário patriarcal).
A primeira tem a ver com a ideia tragicômica, digna de jogos de tabuleiros, da instituição de um Núcleo Duro na Administração (termo que pegamos emprestado do site da associação dos EPPGG).
Não faremos nenhum paralelo desta ideia com, por exemplo, debates em torno do conceito de “núcleo estratégico” do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, por considerarmos que o que está em voga é uma apropriação parcial e tendenciosa do surto gerencialista da década de 90. Se o Plano Diretor, com todo preconceito classista que lhe é intrínseco, já é, em si, a deturpação de muitas coisas, a atual apropriação desse surto gerencialista é a deturpação da deturpação.
O Núcleo Duro remete à imagem de um grupo de engravatados-de-gabinete que se veem como o elo entre os agentes políticos e o “resto” (sendo o “resto” nada mais nada menos que as pessoas que realmente tocam as ações implementadas pelos ministérios).
Valendo-se de uma noção caquética que tende a compreender o universo do trabalho como uma divisão entre os que pensam e os que executam, os “gestores”, supostamente conhecedores de algumas essências misteriosas da gestão pública, conseguiriam dar pitaco em todas as áreas dos ministérios e já nasceriam prontos para ocupar os cargos de chefia nesses órgãos, daí o fato de se vangloriarem como cargos generalistas (um cargo-panaceia).
Uma vez reunidos os generalistas, nos mais diversos ministérios, para definir questões relativas aos mais diversos e espinhosos assuntos (valendo-se apenas da misteriosa fórmula de gestão), o Núcleo Duro simplesmente distribuiria tarefas para os “trabalhadores-resto” e acompanharia a execução.
Todavia, como as “equipes-resto” estão em risco de extinção, graças às políticas de gestão de “pessoas” (pessoas?) do MPOG focadas apenas nos “gestores” (e elaboradas apenas pelos “gestores”, diga-se de passagem), logo não mais existirá vida para além da sala de reuniões do Núcleo Duro. Este fenômeno narcisista é o cume do reunismo que já toma conta dos ministérios. Não são poucas as equipes em que o número de pessoas da área técnica é menor que o número de DAS do setor. As reuniões, definitivamente, terão fim em si mesmas.
O APARELHAMENTO DAS ESCOLAS DE GOVERNO
Para que o conto do Núcleo Duro se sustente, lavagens cerebrais gerencialistas, como as promovidas pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap) para inocentes concurseiros submetidos a seus cursos de formação, são indispensáveis.
Um dado importante a este respeito é que a Enap, no período de 2010 a 2013, destinou 87% dos recursos da área de formação e aperfeiçoamento das carreiras aos servidores EPPGG/APO e, apenas, 13% à formação e ao aperfeiçoamento de servidores das demais “carreiras-resto”, sendo que os EPPGG/APO correspondiam, em 2013, a apenas 0,13% do total de servidores públicos federais civis ativos do Poder Executivo (1.069 pessoas num universo de 585.014 servidoras e servidores). [para mais informações sobre a atuação da Enap, CLIQUE AQUI]
IRRACIONALIDADE E A FALTA DE ISONOMIA NA POLÍTICA SALARIAL DO MPOG
Outro dado importante é a absoluta parcialidade da política salarial do MPOG. Em 2002, a remuneração inicial da carreira dos EPPGG era de R$ 2.376,02 e, atualmente, é de R$ 15.003,70 (o que significa um impressionante “reajuste” salarial de 631,46%).
Para termos noção do que isso significa, um Técnico em Assuntos Educacionais (cargo de nível superior, da área finalística do MEC e que, neste ministério, pode desempenhar as mesmíssimas atividades de um EPPGG) recebe, atualmente, a remuneração inicial de R$ 1.990,22 (à qual é somada uma gratificação de até R$ 3.155,00 mediante avaliação de desempenho. Um dado interessante para os que dizem gostar da “gestão meritocrática”, mas que fugiram de avaliações desse tipo: a avaliação dos EPPGG não tem impacto em sua remuneração). Ou seja, um Técnico em Assuntos Educacionais do MEC, com doutorado na área, com avaliação máxima de desempenho, pode receber até R$ 5.145,22.
De tal modo, para cada EPPGG atuando no MEC poderíamos contratar praticamente três Técnicos em Assuntos Educacionais para desempenhar as mesmas funções. Ressaltando que são três servidores que, seguramente, já leram a Lei no 9.394/1996 ao menos uma vez na vida.
"GESTOR" É SÓ MAIS UM, ESTRATÉGICO É O COLETIVO
Escusado relembrar as causas da falta de perspectiva das trabalhadoras e dos trabalhadores nos ministérios durante a década de 90. Acontece que, ainda que o projeto gerencialista desse período tenha sofrido algumas baixas nos campos jurídico e político, o fato é que continua de vento em popa no âmbito do MPOG.
O mais curioso é que tem sido tocado com a ajuda de servidores públicos que viram nessa proposta uma deixa para suas pretensões corporativistas. Hoje, no Executivo, servidor é lobo do próprio servidor.
O projeto dos “Típicos” (que, no fundo, não passa do típico gosto por privilégios) coloca em xeque o futuro profissional das centenas de milhares de pessoas que optaram por trabalhar nos ministérios.
Ou construímos junto ao MPOG uma gestão de pessoas mais isonômica e competente, que saiba enfrentar as precárias condições de trabalho das equipes dos ministérios por meio de uma visão sistêmica da Administração Direta, que saiba reconhecer a importância do coletivo num tipo de atividade que sempre dependerá do trabalho em equipe, ou os ministérios continuarão sem capacidade de corresponder aos desafios que lhes são impostos pela população. Passou da hora de darmos um basta à estreiteza de horizontes, ao aparelhamento do MPOG e ao financiamento de altos executivos no serviço público. A população brasileira não merece pagar essa conta.
Brasília-DF, 13 de maio de 2016.