23/03/2010

O PNE QUE INCOMODA

Por conta da recente divulgação de dados pela imprensa e da polêmica acerca do atingimento dos objetivos e metas traçadas pelo Plano Nacional de Educação – PNE, trataremos de algumas questões de primeira importância para a análise dos resultados após quase uma década da criação do Plano. O objetivo é desconstruir a imagem de um Plano Nacional de Educação ingênuo, de metas inatingíveis, que tem servido de subterfúgio para o atual cenário do sistema educacional brasileiro, e trazer à tona aspectos do PNE concebido como Plano de Estado – este é o PNE que incomoda o Governo.

As metas do PNE não são factíveis?

Um argumento comum, que tem servido na defesa do inexpressivo alcance pelos governos dos objetivos e metas traçadas pela Lei 10.172, de 9/1/2001, que institui o Plano Nacional de Educação – PNE, é que uma considerável parte das metas do Plano seriam inatingíveis. O Estado não contaria com as devidas condições materiais, independentemente da vontade política de seus governantes, para cumprir com as projeções supostamente utópicas dos idealizadores do PNE .

O problema com esse tipo de argumento é que ele desconsidera um aspecto importantíssimo do Plano: o PNE prevê a correção de suas deficiências e distorções mediante acompanhamento e avaliações periódicas (Art. 3º da Lei). Note-se a clareza do Plano quanto a necessidade de sua reestruturação conforme novos contextos:

Um plano da importância e da complexidade do PNE tem que prever mecanismos de acompanhamento e avaliação que lhe dêem segurança no prosseguimento das ações ao longo do tempo e nas diversas circunstâncias em que se desenvolverá. Adaptações e medidas corretivas conforme a realidade for mudando ou assim que novas exigências forem aparecendo dependerão de um bom acompanhamento e de uma constante avaliação de percurso.

Se porventura o PNE apresentasse metas utópicas, caberia ao Governo apresentar propostas para o redimensionamento das metas e objetivos. É atribuição do Estado zelar para que o PNE permaneça realístico.

Ao usar esse tipo de argumento para justificar os resultados apresentados, o Governo está na verdade atestando a sua incapacidade administrativa. No âmbito do Executivo, a realidade é que o atual Governo Federal foi omisso no acompanhamento e implementação do PNE por questões de vontade política.


O MEC acompanhou o PNE?

A omissão do Ministério da Educação – MEC na implementação e acompanhamento do PNE é um aspecto imprescindível para entendermos os fracassos do Plano. O descumprimento da Lei nº 10.172 pelo MEC foi inclusive objeto de denúncia do Movimento de Valorização dos Trabalhadores em Educação do MEC – MOVATE ao Ministério Público em 21/7/2008 (Procedimento 1.16.000.002945/2008-14/PR/DF – MPF).

A Lei que aprovou o PNE estabeleceu em seu Art. 1º que a duração do Plano é de 10 anos. No Art. 2º, determinou que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão, com base no PNE, elaborar seus planos decenais correspondentes. Cabe ressaltarmos o seguinte trecho:

Será preciso, de imediato, iniciar a elaboração dos planos estaduais em consonância com este Plano Nacional e, em seguida, dos planos municipais, também coerentes com o plano do respectivo Estado. Os três documentos deverão compor um conjunto integrado e articulado. Integrado quanto aos objetivos, prioridades, diretrizes e metas aqui estabelecidas. E articulado nas ações, de sorte que, na soma dos esforços das três esferas, de todos os Estados e Municípios mais a União, chegue-se às metas aqui estabelecidas.

A implantação e o desenvolvimento desse conjunto precisam de uma coordenação em âmbito nacional, de uma coordenação em cada Estado e no Distrito Federal e de uma coordenação na área de cada Município, exercidas pelos respectivos órgãos responsáveis pela Educação.

Ao Ministério da Educação cabe um importante papel indutor e de cooperação técnica e financeira. Trata-se de corrigir acentuadas diferenças regionais, elevando a qualidade geral da educação no País. Os diagnósticos constantes deste plano apontam algumas, nos diversos níveis e/ou modalidades de ensino, na gestão, no financiamento, na formação e valorização do magistério e dos demais trabalhadores da educação. Há muitas ações cuja iniciativa cabe à União, mais especificamente ao Poder Executivo Federal. E há metas que precisam da cooperação do Governo Federal para serem executadas, seja porque envolvem recursos de que os Estados e os Municípios não dispõem, seja porque a presença da União confere maior poder de mobilização e realização.

Adiante, o Art. 3º estabelece:

Art. 3o A União, em articulação com os Estados, o Distrito Federal, os municípios e a sociedade civil, procederá a avaliações periódicas da implementação do Plano Nacional de Educação.

§ 1o (...)

§ 2o A primeira avaliação realizar-se-á no quarto ano de vigência desta Lei, cabendo ao Congresso Nacional aprovar as medidas legais decorrentes, com vistas à correção de deficiências e distorções.

Os Planos Estaduais e Municipais de Educação, consideradas suas especificidades legais e estruturais, devem ter diretrizes, objetivos e metas relacionadas ao PNE, representando a preocupação da sociedade brasileira com a criação de planos de longo prazo, com força de lei, aptos a conferir estabilidade às políticas educacionais. Já em 1932, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova registrava a preocupação com a continuidade das ações:

No entanto, se depois de 43 anos de regime republicano, se der um balanço ao estado atual da educação pública, no Brasil, se verificará que, dissociadas sempre as reformas econômicas e educacionais, que era indispensável entrelaçar e encadear, dirigindo-as no mesmo sentido, todos os nossos esforços, sem unidade de plano e sem espírito de continuidade, não lograram ainda criar um sistema de organização escolar, à altura das necessidades modernas e das necessidades do país.

Para cumprir a Lei, o MEC deveria contar, desde 2001, com um projeto estruturado que respondesse a tamanho desafio. Paradoxalmente, o primeiro mecanismo criado no Ministério da Educação para atender diretamente ao acompanhamento e implementação do PNE foi o “Programa de Acompanhamento e Avaliação do PNE e dos Planos Decenais Correspondentes”, instituído tardiamente, em dezembro de 2005, apenas no âmbito da Secretaria de Educação Básica. Cabe ressaltar que a equipe do Programa era formada por apenas três pessoas (o coordenador do Programa, um técnico e um apoio administrativo) incumbidas de atender à demanda de todos os estados e municípios brasileiros relacionada aos planos decenais. Com esse cenário, as demandas recebidas dos estados e municípios e de outros segmentos sociais, mesmo com a existência do Programa a partir de dezembro de 2005, quase sempre ficaram comprometidas, o que certamente influenciou negativamente o desempenho da educação de todo o País, ainda mais quando consideramos o papel que o MEC tem na condução e indução do cumprimento das metas estabelecidas para todos os níveis e modalidades de educação, em nível nacional, estadual e municipal.

Há que se destacar ainda que pouco mais de 30% dos municípios brasileiros e nem todos os estados possuem planos decenais de educação aprovados em lei. Isso é um indicativo claro de desobediência ao PNE. Hoje, representantes do MEC responsáveis diretamente por essa questão, quando questionados a esse respeito, invocam a autonomia dos entes como justificativa para o não cumprimento da Lei 10.172. Ao utilizar esse argumento, o MEC desconsidera seu papel indutor outorgado pela Lei e nega a realidade dos fatos: após a criação do Programa (final de 2005), existem diversos registros que comprovam que os estados e, principalmente, os municípios, direta ou indiretamente – por meio de entidades ligadas à Educação –, fizeram apelos constantes ao MEC para o atendimento das demandas relacionadas ao processo de elaboração e avaliação dos planos decenais. Quase nenhuma solicitação foi atendida, sobretudo em função do Programa não dispor de uma equipe minimamente estruturada.

O início dos trabalhos do Programa em 2007 foi atrasado diante da indefinição da manutenção ou não do Ministro Fernando Haddad no cargo, uma vez que começava o segundo mandato do atual governo. O Ministério da Educação, segundo fora veiculado na imprensa, seria um dos prováveis órgãos atingidos pela reforma ministerial. Esse quadro de instabilidade para os atuais cargos políticos do MEC coexistia com a divulgação de dados aferidos pelo INEP que apontavam a queda do índice aprendizagem dos alunos, o que prejudicaria uma boa avaliação do trabalho que vinha sendo desenvolvido pelo Ministério. Esses dados coincidiam com os relatórios produzidos no âmbito do Programa de Acompanhamento do PNE e dos Planos Decenais, em colaboração com INEP, a partir dos trabalhos realizados em 2006. A divulgação dos relatórios foi proibida pela Administração do MEC, embora já diagramados para a produção gráfica. Nesse contexto foi lançado o Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE, que é um “plano de gabinete” utilizado como resposta política para a manutenção dos grupos diretamente ligados à direção do MEC. O lançamento do PDE modificou significativamente as ações do Programa, já que havia um entendimento de que o PNE, elaborado durante o Governo FHC, concorreria politicamente com essa tentativa do Governo de imprimir uma nova marca. Nunca foi definida formalmente uma interface entre o PDE e o Plano Nacional de Educação – PNE, embora haja registros no Documento Base da Conferência Nacional de Educação de que o PDE serviria à materialização do PNE. A prática demonstrou o contrário. Apenas no final de 2008, por conta da denúncia apresentada pelo MOVATE ao Ministério Público, e em função da CONAE, algumas questões, como a avaliação do PNE, foram retomadas no âmbito do Ministério.

Ainda na perspectiva da relação conflitante entre o PNE e o PDE, além da já referida proibição de divulgação dos relatórios, podemos afirmar a forte campanha publicitária dos últimos anos em torno Plano de Desenvolvimento da Educação em detrimento da divulgação do PNE, contrariando a determinação legal:

Art. 6o Os Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios empenhar-se-ão na divulgação deste Plano e da progressiva realização de seus objetivos e metas, para que a sociedade o conheça amplamente e acompanhe sua implementação.

Por razões alheias ao anseio histórico da sociedade brasileira pela criação de um Plano de Estado, o atual Governo cometeu o lamentável erro estratégico de não ter assumido o Plano Nacional de Educação, o que significa um grande retrocesso.

Os objetivos e as metas deste plano somente poderão ser alcançados se ele for concebido e acolhido como Plano de Estado, mais do que Plano de Governo e, por isso, assumido como um compromisso da sociedade para consigo mesma.”


Os vetos do Governo Fernando Henrique inviabilizaram o PNE?

Inegável o fato de que os vetos apresentados pelo Governo FHC impactaram negativamente as propostas do Plano Nacional de Educação. Contudo, dos dez anos de vigência do PNE, oito ficaram sobre a responsabilidade do Governo Lula. Tanto o Governo FHC, quanto o Governo Lula devem ser responsabilizados pelos vetos. Um, pela criação, outro, pela manutenção dos obstáculos.

Importante ressaltar que as questões de ordem financeira são constantemente utilizadas para ocultar falhas importantes na execução do PNE. A orientação técnica aos municípios na elaboração de seus respectivos Planos Municipais de Educação, para citarmos um exemplo, é o tipo de ação que depende exclusivamente de competência administrativa para ser viabilizada, uma vez que o MEC possui as condições materiais para superar o longo processo de sucateamento da força de trabalho do Ministério. Contudo, em vez de propor uma reestruturação à altura dos desafios do Órgão, o atual Governo acabou rendendo-se às velhas práticas de aparelhamento do Estado e aos projetos messiânicos, verticais, não-estruturais, que acabam por contribuir ainda mais com o cenário de descontinuidade das ações.

4 comentários:

  1. Atual e importante essa reflexão acerca do Plano Nacional de Educação-PNE. Focada no realismo, essa leitura realística dos fatos precisa existir. Essa primeira parte do texto, em suma, traz algo daquilo que não é dito oficialmente. Aguardo a próxima parte!

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  2. Estamos trilhando os caminhos da continuidade do PNE com os efetivos do Ministério da Educação

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  3. Lembrei de uma estória:

    0 Imperador foi ocupar seu lugar no cortejo da procissão embaixo do luxuoso dossel e todos os que estavam nas ruas e nas janelas exclamaram:
    - Como está bem vestido o Imperador! Que cauda
    magnífica! A roupa assenta nele como uma luva!
    Ninguém queria dar a perceber que não podia ver coisa alguma, para não passar por tolo ou por incapaz. 0caso é que nunca una roupa do Imperador alcançara tanto sucesso.
    - Mas eu acho que ele não veste roupa alguma! -
    exclamou então um menino.
    - Ouçam! Ouçam o que diz esta criança inocente! -
    observou seu pai a quantos o rodeavam.
    Imediatamente todo mundo se comunicou pelo ouvido as palavras que o menino acabava de pronunciar.
    - Não veste roupa alguma. Foi isso o que assegurou
    este menino.
    - 0 Imperador esta sem roupa! - começou a gritar o
    povo.
    0 Imperador fez um trejeito, pois sabia que aquelas
    palavras eram a expressão da verdade, mas pensou:

    - A procissão tem de continuar.
    E assim, continuou mais impassível que nunca e os
    camaristas continuaram segurando a sua cauda invisível.

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  4. Em relação ao PNE, é óbvio que o MEC está nú! Parabéns aos servidores do MEC por terem a coragem de dizer o óbvio, tiveram a olhar sincero daquele menino...

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